Trânsito caótico. Quebrei o rádio do carro e comecei a cantar, eu mesmo. Uma música que era só assobios, qualquer coisa dos Beatles. Abri a janela para jogar o toco de cigarro e fiz orações mentais para que a Lei do Fumo ficasse só em Sampa, mesmo. Notei que eu já estava parado naquela rua há mais de meia hora e permanecia inusitadamente tranquilo. Os carros em frente começaram a andar, enfim. Quando dei partida, a porta direita do meu carro verde é aberta e senta uma moça. Qualquer um sabe que poderia se tratar de um assalto e eu poderia estar com uma arma diante da cabeça, mas não. O cheiro de incenso tomou conta do ambiente. Respirei: Dulce.
Continuava a mesma, em sua transparência de fantasma. Talvez fosse, de fato. Essa dúvida tresloucada me fez mergulhar num silêncio irreal. Eu já havia esquecido os compromissos. O carro ia sendo guiado às avessas. Olhei pro lado para me certificar que era ela. Foi quando meu rosto consumiu-se por um beijo. Definitivamente, era ela. Havia voltado, então. Nem um telefonema, um aviso, um sinal que me fizesse buscá-la no aeroporto. Sim, tenho noção do quanto soa patética minha imaginação e que Dulce jamais se importaria em alertar alguém sobre chegadas e partidas, mas eu queria ter sido o primeiro rosto que aqueles lábios conheceram. Ela continuava a ser minha ideia platônica.
Não trocamos nenhuma palavra. Ela olhava pela janela, ensimesmada. Resolvi acender outro cigarro. Parei o carro no acostamento e o isqueiro vermelho fez fogo. A fumaça ia tomando conta do ambiente, se misturando ao cheiro de incenso. Ela me olhou, séria. Eu olhei para a boca. Não moravam ali dentes perfeitos, mas se montavam num sorriso avassalador. Pareciam convidar meu corpo inteiro para fazer festa. Ela não estava mais bonita ou atraente, não. Mas aquela porra daquela vis(i)ta ardente, só o cigarro sabia acalmar. De unhas escuras, largas e curtas, ela aproximou os dedos em minha boca, pegou o cigarro para tragar, enquanto prosseguia na história. As histórias dementes continuavam, mas Dulce parecia outra. Eu arquejava, num desejo incontido de tocá-la, inteira. Olhava, numa estupefação consciente, sabendo que ela adorava notar essa expressão em meu rosto, ou no de qualquer um. Dulce se alimentava de insanidades prosaicas, e eu achando que havia me acostumado. Temi saber seu objetivo ao entrar num carro verde. Parei no café mais próximo para conversarmos.
Escolhi uma mesa enquanto ela foi ao banheiro. Pensei em ligar para Sávio e contar das novidades, mas desisti. Ele certamente me incentivaria a organizar uma série de putarias para prendê-la. Sorri por dentro, pensando nas cócegas que Dulce proporcionava a minha alma inquieta. Pedi um café para esperá-la. Coloco as mãos na cabeça, em posição de descanso, e observo o nada no momento em que ele é preenchido por presença. Ela, cigana. Cabelos indomáveis. Uma camiseta branca, colares, uma saia estampada que dançava sobre seus pés, aqueles olhos preto-azulados, e uma rosa nos cabelos. A rosa era invisível, coisa minha. Pensei em despi-la ali mesmo. Dulce veio até mim, séria, e sentou-se ao meu lado. Odiei que fosse assim, porque queria meus olhos nela, mas tão logo senti nossas peles em comunhão, mudei de opinião.
Porra, me beija! Foi o que ela disse, com uma vontade urgente dentro de uma voz mansa que parecia poesia errada. E me entregou os lábios com uma castidade que eu jamais imaginaria nela. As mímicas se alargavam. Dulce vinha chegando pra dentro de mim, pulsando. Fomos ímã por um momento que não era tempo. No fim, eu me perguntava se isso aconteceria caso o homem do carro verde fosse outro. Mas, quer saber? Que vá à merda tudo que não seja o agora.
Fomos ao apartamento. Sávio não estaria lá, tinha viajado para visitar a moça de Fortaleza. Sempre, em todos os anos naquele prédio, subi escadas. Mas Dulce era mutante, exercendo poderes promíscuos em minhas ações, ou na falta delas. Nem notei que estive no elevador, em meio a carícias impraticáveis. Não, nem dormimos juntos. Ela apagou, de repente, abraçada a uma garrafa de vinho. Linda, com aqueles seios de pera, vestida de uma nudez apaziguante.
Manhã seguinte, minha boca era seca ao sabê-la voltando a Londres. Ela, vestida de sol, estirou-se ao meu lado no sofá. Fumava já, àquela hora. Com um gesto que ainda não tinha sido feito, me contou que eu era seu brinquedo sério. Nos levantamos, fomos para o aeroporto. Tomei uma coca e ela mordia uns cubos de gelo. Última chamada para o voo e nossos olhos se encontraram. Na mesa, um sinal de batom no guardanapo. Enxerguei seus lábios ali, resolvi que era um beijo-recordação. Coloquei-o no bolso.
Caminhei mudo ao seu lado. Já não tinha fila para embarcar. De repente, como que numa tentativa impulsiva de prendê-la a mim, disse-lhe: casa comigo? Ao que ela respondeu:
- Não fode, Leo! - e caminhou para o embarque com um olhar obscuro e borrado, sem notar a rosa que lhe despencava dos cabelos de fogo.
Incompreensão é algo mágico, definitivamente. Dulce não desconfiava, mas sua voz foi esquecida em meus ouvidos.
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E Dulce é estranhamente atraente. Fico a imaginar uma pessoa como ela e as cenas na qual está presente... são de uma naturalidade quase surreal.
ResponderExcluirLeo e Dulce possuem uma incompreensão de sentimentos (entre ambos) que chega a ser paradoxal... eles se completam e se esvaziam ao mesmo tempo.
Ela se foi e levou com ela a voz que permanecia nos ouvidos e nas lembranças de Leo...
E utilizando o verso do Zeca Baleiro eu vi sua partida: "Com o futuro em suas asas ela se vai, ela se foi..."
Beijão Jayaaaammm!
Não gosto de mulheres como Dulce.
ResponderExcluirMas ela está definitivamente me conquistando.
eita Dulce... qdo é q ela volta?
ResponderExcluir=*
Jaya linda...
ResponderExcluirSempre estou por aqui... impossivel não voltar pra acompanhar chegadas inesperadas como a de Dulce... rs
Beijo e mais beijos...
de repente é amor..
ResponderExcluirDulce é uma mulher e tanto
e que tanto.
chega, invade, transborda
e vaza.
amo jogos assim.
:*
A Dulce sempre volta.
ResponderExcluirflores.
Eu?
ResponderExcluirPerdi a mão.
Por favor, escreve um livro beeem grande sobre Dulce? Escreve, escreve, escreve, escreve?
ResponderExcluirQuando acaba o texto dá uma tristeza. Andaaaa, Jaya. Escreve mais! ;)
Beeeeeeeeeeejo!
Dulce é um espelho, uma história do passado-futuro antiga.
ResponderExcluirai, ai Jaya.
Gosto da Dulce. Ela é atraente sem aparentar. Ela atrai sem querer conquistar. E na sua narrativa, quase posso ver os cabelos cor-de-fogo.
ResponderExcluirgosto tanto daqui...
ResponderExcluirJá quis ser Dulce, assim...
ResponderExcluirUau, uau! Sinto uma pontinha de inveja da louca liberdade de Dulce.
ResponderExcluirOnde andará Dulce? [ parafraseando um pouco do Caio F. Abreu)
Adorei o texto.
Beijo.
...Dulce só pode ser assim livre porque irreal, porque desmaterializa-se como cheiros orientais, como incensos desvelados pelo ar pesado de uma grande metrópole, que a seu desapego se assusta, pois que Dulce é tresloucadamente singular, e exatamente calma em sua aparente loucura, uma vez que só se pode entregar a loucuras aqueles plenos de lucidez. Por isso que talvez não se possa apreender Dulce, prendê-la em convencionalismos ou explicações, Dulce é, sendo, não deixa marcas, porém pistas de si, pistas falsas, caminhos desconexos, desejos lancinantes, jamais satisfeitos por completo, pois que Dulce é assim, caleidoscópica aparição...
ResponderExcluirbju do alex....
É que já foi dedicada a mim também. :~~
ResponderExcluirE é que se tivessem entrado no meu quarto eu teria feito exatamente a mesma coisa.
"A moça me lembrou um jeito 'Dulce'" agora também, e lendo Dulce agora, eu pensei se consegui te ler sem usar os olhos. Poxa, um plágio sem razão!
Coisas que pessoas distantes pensam ao mesmo tempo, e você aqui "tão pertinho de mim".
Ahh, Jaya, eu ainda sento do lado dele e te conto tudo! xD
Acho que achei uma boca ;)
Beijos, beijos, que sempre te rondam.
kkkkk, morri de rir com sua vontade de quebrar o rádio.
ResponderExcluirbeijos, honey e boa semana
MM.
>>> algumas vozes ficam, mesmo, nos ouvidos......
kkkkk, morri de rir com sua vontade de quebrar o rádio. [2]
ResponderExcluirPorra, até eu pensei em Dulce, e continuo pensando... [vim ler um texto qualquer e acabei ficando 40 minutos absorto em palavras deliciosas e viciantes. Eu deveria estar dormindo...] =)
Meu, como assim??? Dulce [parafraseando comentários anteriores ao meu] é definitivamente o tipo de mulher que não atrai meu "eu-chato-cerebral & racional", mas atendo-nos à liberdade proporcionada pela arte, é encantadoramente instigante. Visceral. Vermelho-sangue.
Estou esperando outras visitas doces...
Ouvindo Einstürzende Neubauten: "Kalte Sterne" - igualmente vermelho sangue!!!
Beijaya!!!
PS: Adorei o "Beijallan"!!! XD
Por favor, escreve um livro beeem grande sobre Dulce? Escreve, escreve, escreve, escreve?
ResponderExcluir[2]
A Dulce me incomoda, sabe?
ResponderExcluirEita mulher estranha!!!rs
Aí a gente vai conhecendo a Dulce, vai lendo a Dulce, sentindo o cheiro e tals, e de repente consegue ver a rosa despencando dos cabelos dela.
Aí.. Aí a gente pára de se incomodar, a gente brilha com o brilho dela e termina engrossando o coro dos que querem um livro beeem grande sobre Dulce! rs
Beijo queridona!
Conheço uma Dulce de nome Gabriela. Dulce na loucura, no jeito, nos trejeitos, nos trajes. Não imagino ela jogando o celular no carro de alguém porque ela anda meio ruim de grana, mas que daria um jeito daria. Eu não sou Leo, embora a minha Dulce já tenha também, nessas loucuras, dado uma passada rápida em minha vida em um feriado em que estávamos ambos hospedados no sofá de um amigo. Às vezes me liga pra falar que sente saudade, que a gente devia tomar um cerveja, um chá, mas nunca vai me ver quando eu tou na cidade. Uma péssima amiga, certeza.
ResponderExcluirAdorei o texto, curto muito a Dulce, tenho pena do Leo.
Bjs!
Ah, quase me esqueço:
ResponderExcluira) Assassina de gatinhos!
b) e a OAB/FDP?
É impossível não falar de Dulce, Jaya. Vou te confessar que, desde a primeira vez que te li, o texto vinha na minha mente, mas sem muita intensidade. Depois de ler Felipe, piorou as coisas e, novamente te lendo, foi impossível aquietar as palavras.
ResponderExcluirEu tinha que falar de Dulce,
e, acho, invejo ela.
beijomeliga *:
Estou sentindo que em breve, Dulce estará lendo Jost Krippendorf e escutando Joe Satriani...
ResponderExcluirPalavras borbulham... É incontrolável
Beijaya!!!!!!!!!!!
Ela é impulsiva, como tantas vezes queremos ser... E intensa, em cada detalhe. Não é uma moça qualquer...
ResponderExcluirMuito bem de ler... Eu passaria dias lendo sobre Dulce e suas impulsividades...
Beijão
seria pedir de mais que Dulce me achasse, embora coerente ..
ResponderExcluir:*
favoritado ♥
não te engano, tenho um que de Leo.. quando ele diz 'casa comigo' moça, me vi cuspido e escarrado, juro. tudo que necessito é um vicio sincero.
ResponderExcluirdaí, quando acho que penso só, me vem tu e fala sobre andar..
é bem e justamente isso.
e se José Régio me permite:
"Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que vou!"
ahh estou dando um 'reset' na vida.
escuto rumores de que sumi..
ou terei eu me colocado a andar?
se já foi assim, sabes.
um beijo singular :*
espero por teus silêncios musicados.. vício adquirido.
ResponderExcluiro que brilha me encanta, e
o encanto de olhar, me basta.
concordamos sim.
em todas as pessoas
do moço, para ti
que não é dele, mas também é moça.
um beijo, seguido de outros.
Nãaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaoo!
ResponderExcluirSe apagar a luz, eu não vou poder olhar. ;)
Oi linda!!!
ResponderExcluirsaudades de vc tbm!
tô precisando mesmo postar. tô cheia de coisas na cabeça, sabe? mas tá difícil organizar essa minha vida.
foda = difícil?
acho que sim, né?
mas acho que vc deve ser bem mais foda. e esse foda = foda mesmo!
hehe
sei que vc dá conta, menina.
Jaya...
essa Dulce, hein?
que inveja dela!
dessa flor nos cabelos, essas unhas escuras, largas e curtas...
que inveja dessa imponência toda.
e dessa coisa que ela causa na gente...
esse desapego todo dela.
eu aqui, ando tão apegadas as coisas que eu nem sei o que são. e esse apego todo me dói um tanto.
Jaya, vc é FODA!
beijos!!!
Dulce é de intensidade irreal... prefiro a irrealidade de Jaya.
ResponderExcluir(Se eu soubesse narrar como você, pode crer, eu tava rico!)
Não consegui conter. Elas borbulhavam dentro de mim, como um silêncio caótico, se é que isso é possível. E explodiram.
ResponderExcluirDulce ampliou sua biblioteca, lendo Jost Krippendorf.
Dulce comprou novos CDs, inclusive, Joe Satriani.
Dulce se assumiu como ruiva, e espera voltar ao seu berço em formato de flor de lótus e à serpente que devora a prórpia cauda.
Beijaya!!!!!!!!!!!♥
Famosa essa Dulce, Jaya! É um personagem forte e instigante. Daqueles personagens que te cativam sem saber o porque...
ResponderExcluirBjos e td de bom!
Eu não sei se você já foi ao Caldeirão da Bruxa, onde escreve A Senhora ...
ResponderExcluirnão é o mesmo estilo que o seu, mas é muito gostoso de ler, que nem o seu ...
estilos diferentes e escritoras preferenciais, uma bela combinação! e os meus olhos continuam agradecendo a vocês ...
gostei da resposta dela: Não fode, Leo, foi ótimo! Acho que ele deveria imaginar que seria assim, não? Afinal, ela é Dulce ...
Ah, esqueci algo importante pra te falar: terça-feira começa o trabalho para montagem dos arranjos das letras dos poemas, incluindo a Canção das Mães ... logo, logo, vou poder te mandar em letra e melodia ...
ResponderExcluirGarotinha complicada essa Dulce, né, Jaya?
ResponderExcluirMas, que deixa a gente curioso, deixa!
Bjoooooooooooo!!!!!!!!!
TCC terminado a tempo!!!!
ResponderExcluirValeu pelas palavras de apoio... conversinha rápida, mas inspiradora. Agora, é esperar pelo veredicto da orientadora para ajustar os últimos detalhes e defendê-lo em breve... aiaiai
Estou prestes a virar para minha orientadora e dizer: "Ah, não fode" - Olha a influência... rsrsrs
Beijaya!!
Já houve uma Dulce em minha vida, e ah como ela me doeu, e como era intensa, mas nunca tão atordoante quanto esta.
ResponderExcluirUm beijo Jaya!
Hum...... achei!
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