Despedir dá febre.
[João Guimarães Rosa]
[João Guimarães Rosa]
Eu fico pequenininha, dona Maria. É, assim, desse tamanhinho. Coloca a mão aqui no meu coração que a senhora há de sentir. Tá acelerado, não tá? Tem tanta coisa misturada aí dentro. Uns bichinhos esquisitos trimilicando, sabe? Perguntei à tia e ela me disse que era só uma coceirinha de nuvem. Eu ri da cara dela, porque eu já sei que nuvem é fumaça. A tia pensa que me engana, aiai. Tia danada, né, dona Maria? Será que a senhora se importa se eu fico aqui falando e falando? Não? Tá bom. É que eu adoro vir aqui na fazenda visitar a senhora. Quando a gente vem chegando, de dentro do carro eu já enxergo a senhora sentada ali no banquinho que fica em frente à casa. Vejo a senhora de lá da estrada e já começo a sorrir. Por isso que quando o carro para eu desço correndo e pulo nos braços da senhora. Ninguém mais tem esse abraço, feitinho assim pra mim. A senhora é tão fofinha, dona Maria! Parece algodão. Aí depois do abraço eu saio correndo disparada atrás do cheiro de café que mora na cozinha. O café mais cheiroso do mundo, eu digo para quem quiser ouvir. E fico lá, sentada em cima das minhas mãos e balançando os pés, na beira do fogão à lenha, enquanto a senhora labuta com as panelas e canta uma música. Agora a senhora tá aí, deitada na cama, parecendo um bebê. Eu vou cuidar da senhora, dona Maria. Igual àquele dia que eu tomei uma queda perto do açude e a senhora me pegou no colo e cuidou do meu machucado. Nem saiu tanto sangue, né? Mas eu chorei tanto. Porque eu sou meio boba e choro muito. Lembro que eu perguntei como a senhora fez para passar minha dor e a senhora disse que a receita era amor. Que amor cura tudo. Pois então a senhora há de ficar curada, também. Trouxe um monte de amor na minha mala, viu? Pedi para os primos, tias, tios, mãe, pai. É tudo pra senhora, dona Maria. Tudo. Toma.
Ah, olha aquele passarinho, ali. Ué, dona Maria, a senhora tá chorando, tá? Segura minha mão, então. Pode apertar bem forte. Sempre que eu choro eu seguro na mão da mãe. Nem sei direito o porquê. Acho que é porque a mãe é a pessoa mais forte do mundo. A mãe é linda, dona Maria. Fala um monte de coisa sabida para mim, que nem a senhora faz. Eu não sei viver sem a mãe. Toda vez que eu choro, ela fala que vai passar e me dá um beijo na testa. Sempre passa. Posso beijar a testa da senhora? Olha, eu desconfio que a mãe sabe um monte de coisa mágica para me deixar feliz, dona Maria. Queria que ela pudesse usar no mundo todinho, essa mágica. Queria mesmo. Dona Maria, a senhora quer amora? Colhi algumas antes de vir para cá. Vermelhinhas, as bichinhas. Eu tenho cá para mim que amora é a fruta mais parecida comigo, aqui nessa fazenda. Meu lugar preferido é ali, do lado do pézinho dela. Eu gosto quando a senhora me chama de minha amorinha e me aperta a ponta do nariz. Eu trouxe flores para a senhora, comprei junto com a mãe. Ela colocou naquele vaso bonito em cima da mesa de jantar. Depois a senhora vê. Nunca dei flores a ninguém. Eu fico vermelha quando ganho presente, ou quando dou presente a alguém. A vó reclama comigo nos meus aniversários, só porque eu fico levantando o vestido. Ela diz que eu já sou mocinha e que não posso ficar levantando a roupa. Mas é pura vergonha, dona Maria. Parece que ninguém entende que é vontade de sumir e talvez o vestido tampe pelo menos o rosto da gente. Cada uma, essa vó. A senhora lembra muito ela. Às vezes parece que as duas têm o mesmo cheiro. Cheiro de vó.
Eu ajudei a mãe a enrolar um brigadeiro para a gente comer depois do almoço. A mãe sabe fazer doces, mas o doce de leite dela não é igual ao da senhora. Eu nem falo para ela, para ela não ficar triste, né? Mas o doce de leite da senhora, com aquelas bolinhas e os cravinhos dentro. Aiai. Fico com água na boca, só de lembrar. Outro dia eu tava chupando manga e o pai ficou falando que eu sujei tudo. Eu expliquei para ele que manga só se chupa assim. Era tão bom ficar aqui na fazenda, me lambuzando debaixo do pé de goiaba, com a cara toda amarela e ouvindo as histórias da senhora. A senhora dava aquela risada gostosa e eu ficava feliz o dia inteiro. Depois a senhora me colocava naquela baciazona e me dava um banho. A senhora lembra? Eu vou contar um segredo, dona Maria: vou sempre chupar manga desse jeito, mesmo quando eu já for grandona.
Já tá de noite. Papai do Céu parece que fica mais perto, quando é noite. Eu sempre converso com ele sobre a senhora. A vó me ensinou a orar desde que eu era pequenininha, aí eu oro todo dia antes de dormir. A vó me disse que todo mundo é irmão, sabe? Achei isso a coisa mais linda. Porque assim eu posso ser irmã de Julinha e de Matheus. Mas tem gente que não quer, dona Maria. Isso deixa Papai do Céu muito triste. Deixa eu botar esse colar de pérola na senhora, deixa? A senhora fica parecendo uma pintura quando usa ele. Eu que queria ter pintado a senhora. Acho que todo mundo ia querer uma igual, mas nem dá para existir no mundo mais de uma cópia dessas coisas encantadas, assim, que nem a senhora é.
A senhora é tão coisada em mim, dona Maria! Eu ri agora. Lembrei da mãe rindo de mim, quando eu falo coisado, negoçado. A senhora fala igual. Será que a mãe não sabe que não existe palavra para tudo? Essa mãe, viu? Eita, parece que vai chover. Eu gosto de chuva. A senhora também, que eu sei. A fazenda fica toda verdinha quando chove, e o açude nunca fica seco, desse jeito. Toda vez que chove eu lembro daqui. A senhora tá com sono? Tá com os olhinhos nublados. Vai chover também, vai? Parece que eu tô ficando esquisita, dona Maria. Tem um trem me queimando por dentro, agora. Igual aquele dia que o pai viajou e eu fiquei com saudades dele. A senhora disse que era isso minha febre e nem adiantou nada o remédio que a mãe trouxe, não foi? Deve ser isso, não deve? Deve ser que a senhora tá querendo ir embora. Mas e se eu não der tchau, dona Maria? Aí a senhora fica?
...
Eu fiquei, dona Maria. Nenhum termômetro dá conta dessa história de falta sobrando. E me dá uma vontade danada de chorar. Mas a senhora tá brincando com as estrelas, agora, igual menina. E olhando com seus olhos doces os anjinhos e suas liras. Então eu vou parar de ficar triste, porque eu prometi. Já sei que nem existe cura para tudo. E todo aquele amor que eu trouxe para a senhora, tá aqui, ainda. Tem um tantão infinito lá, de onde vieram aqueles. O amor tá solto, dona Maria. O amor tá solto e isso é coisa da senhora.
Jaya, fiquei encantada. Teceu tantas recordações, e tantas marias se resumem a uma só aqui. Minha vó se chamava Maria, não a conheci, mas senti que talvez essa, pudesse ser um pouco a minha Maria. E eu daria todo o tipo de amor que eu andei guardando na minha mala.
ResponderExcluirLinda Jaya!
ResponderExcluirQue texto belo! Minha vó também se chamava Maria. Ela agora mora com Papai do Céu.
Muitos beijos pra ti, querida!
P.S.:É bom que somos todos irmãos, pois gosto da idéia de ter uma irmã feito ti!
Apaixonante.
ResponderExcluirTão doce, emocionante...
Uma inocência, hoje tão difícil.
E particular: Um amor plantado, frutificado, colhido e conservado.
Eu amei teu texto!
Beijos.
todos têm uma maria na vida
ResponderExcluirVim pra dizer que vc é um doce, maior! E que tenho saudades, grandes!
ResponderExcluirE pra falar tb que estou voltando! E que voltarei pra ler com mais calma, tá?
Beijos, Jaya! Linda vc!
Dona Maria foi..Antes recebeu solidariedade,carinho, atenção e amor.
ResponderExcluirPapai do céu quando chama, não tem jeito.
E mesmo com todo amor que Dona Maria deixou, não partiu só.
O mais importante nessa vida é tocar o ♥ das pessoas.
Beijos moça. Bravo!
Que Deus te proteja pois abençoada você já é!
coração de Maria é leve como seda, forte como linho, é pote de mel, é louça fina, é anjo do céu.O amor há de ser guia constante na amizade
ResponderExcluirO que eu digo pra você agora?
ResponderExcluirGostei da observação final: "vou parar de ficar triste, porque prometi". Se você for parar pra pensar, enquanto Maria ainda contava histórias, enquanto seus olhos ainda era de um céu limpo, seus momentos com ela eram sempre felizes, então não vai ser justo com Maria ficar triste por ela. Pelo contrário, mantenha as lembranças. Chupe manga e fique com a cara amarela debaixo de um pé de goiaba, colha amoras...não deixe os melhores momentos irem embora. Enquanto fizer isso, Maria vai continuar dentro de você, contando histórias para o seu coração.
Um grande abraço!
Quanta doçura,quanta melodia em cada palavra,me lembrou 'Santa Chuva' De Marcelo Camelo.
ResponderExcluirMinha linda Jaya...
ResponderExcluirAi, que delícia vir aqui! (suspiro...)
A `minha Maria` é justamente a minha vózinha, que está longe de mim hoje... E vc me fez ficar pertinho dela nesse texto.
Aiai...
Bjo, minha flor mais linda!
(ps.: mesmo quando sumo, sempre visito, mesmo sem deixar nenhum sinalzinho...rs)
Lindo Jaya. Lindo!
ResponderExcluircomo eu gosto de tudo isso!
Enquanto eu lia tuas palavras quase me senti no seu colo e no da dona Maria, sentindo cheirinho verde molhado de fazenda...
ResponderExcluirEsse amor solto vai fazer você parar de tristeza viu, Jaya?
(e não se sinta atrevida ao me palpitar... seu palpite-poesia jamais vai me deixar ácida.)
Um cheiro!
... fez-me revisitar antigas gavetas. antigas saudades e febres. vida quando ela era mais bonita.
ResponderExcluirbeijos meus, Jaya.
Eu tava ouvindo Chico hoje:
ResponderExcluir"Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar"
Seria a trilha que eu selecionaria pro seu texto. Saudade. É um tema bonito. Eu queria poder saber falar dela. A gente fala de saudade e vem à tona um monte de coisa bonita, as lembranças. A menina reviveu toda a felicidade naquela saudadezinha sentida ali, por Dona Maria. Tenho pra mim que saudade é aquilo que fica quando alguém tem que ir.
"A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu".
Eu gostei do tom adotado. Dessa coisa pueril, inocente, roceira. A poesia é simples. O texto inteiro foi.
Dona Maria deve ter sido boa. Quem ensina amor, só pode ser.
Beijo, Jaya.
Também lembrei da música do Chico que o Lipe falou aí em cima e também ouvi hoje...
ResponderExcluirSaudade é coisa estranha de sentir.
E teu texto deu saudade, lembrou inocência e esperteza de criança. Tão bonito tudo nele.
Dona Maria deixou saudade, mas também ficou presente.
Beijos, Jayaam!
aiai emoção... tanto amor solto pelo mundo... você parece criança.
ResponderExcluirLindona... eu não tenho comentado, mas tenho "te lido". Só que hoje, na maior correria do planeta, eu encontro isso aqui... e não teve jeito, fiquei coisada, negoçou tudo por dentro, tive que vir lhe dar um beijo. Ou um xêro, como é mais gostoso, pelo menos, pra mim.
ResponderExcluirMeu Deus, Jaya...meu Deus...
ResponderExcluirQue coisa mais linda!
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