Dancei a noite inteira cheirando seu cangote de
cheiros profanos e perturbadores. Desfiz a fita amarela que segurava seus
cachos espantados e me deixei enfeitiçar por todos os seus movimentos. Nunca
então havia cometido pecado mais doce que aquele: o de morar nos olhos claros
de Helena. Requebrava de um jeito desequilibrado, com gestos bêbados e suaves,
no meio da roda, me olhando de cima, cheia de desdém, mordendo os lábios e me
implorando um verso doido. Fiz um concerto inteiro só para despertar sua
emoção.
Para Helena, eu sempre tirava o chapéu. Ela
passava e levava consigo tudo o que eu era. Meu sorriso, meus sentidos, meus assuntos. Já era
dona do meu cavaquinho, cada uma das cordas havia decorado seu nome, só obedeciam ao ritmo que movimentasse seus quadris. Empenhei minha viola porque só sabia chorar por ela.
Passava as noites em claro pensando em sua pele de Iracema, que acordava a cada toque meu. Fumava um cigarro, bebia uma aguardente, sentava no mesmo banco
de sempre no boteco, e ficava ali, riscando o balcão com meu cotovelo de apoiar todos esses devaneios
de amor demais.
Guardava meu dinheiro, economizava os miúdos, juntava meus poemas, comia
na casa de Ana, dormia na casa de Rita, desenhava o corpo de Júlia, fazia tudo
por Helena. Fui ficando a cada dia mais desajustado, a cada hora mais
desapontado. Helena estava solta no meu coração de tantas prendas - tantas presas. Na sua
eterna inquietude, espalhou-se por meu corpo inteiro e, ainda assim, não saciava. Era um anelo de vontades que me dominava o juízo ao mesmo tempo em que acabava por perdê-lo.
Já numa noite de muita graça, com a quermesse armada
na praça central, veio Helena enfeitando o vento com seu jeito de se espichar e me atiçar.
Usava uma saia rodada e um chinelo dourado. Pisava naquela rua de pedra como se
o mundo acabasse de ser construído, só para cabê-la. Vinha numa avidez exausta,
muito selvagem, deixando seu rastro. Parecia uma presa muito difícil, que
jamais cairia na minha tocaia. Corri ao seu encontro, ofegante, rondando a
caça, armado de carinhos. Seu corpo, suado de muitos passos, grudava sua blusa
branca nos seios, deixando exposta uma provocação latente, tão dissimulada
quanto ela mesma.
Foi atrás da igreja que nos descobrimos. Helena
não se debatia, me deixava pegá-la; amansá-la ainda quando fazia suas vezes de
bicho, rangendo os dentes e gemendo o som da sua raça de mulher voraz. Era tão faminta
que salivava sua libido em minha boca. Nessa guerra tão lasciva, montamos ali uma
trincheira, redoma para o prazer que vinha sendo descoberto. Debaixo da saia de
Helena, a poesia me queimava. A heresia mais bonita e impetuosa foi essa que
cometemos, abençoados por lua e estrela. Um teto de fulgor.
Depois era manhã e acordei antes do sol, para prepará-lo. Lustrei a ladeira
toda só para que brilhasse o seu gingado. Fiquei na janela, ensaiando uma serenata
com uma caixinha de fósforo nas mãos, falando muito torto, vestido em meu
farrapo. Muito singelamente, soltei um verso no espaço, quando ouvi os
primeiros passos. Num improviso vagabundo, Helena caiu em minhas mãos,
exoticamente desarmada, me permitindo dedilhá-la ali, no meio da cidade.
Tão maluca e aturdida em sua própria magia,
Helena sambou. Em mim.
Suspirei fundo e desejei ser Helena, só por um instante.
ResponderExcluirVocê sempre tirando suspiros de nós, Jaya.
Adoro quando seu texto tem como cenário uma cidadezinha do interior com ladeiras, ruas de pedras, uma igreja na praça principal. Acho que todo mundo já teve um amor numa praça assim, né? Ou vários.
ResponderExcluirTe dizer que eu fiquei com medinho de que quando ele acordasse, Helena já não estivesse ali. Fiquei foi feliz demais no final! Sorri bonito. Hahaha
Você colocou nesse texto um amor gostoso demais de ler. E lindo de sentir.
Coisa linda!
Uns beijos, nega.
Jaya, Jaya, Jaya, Jaya... o que dizer desse texto? o que dizer desse sambinha bom, dessa melodia suave que desenrola em cada palavrinha e nos embala para mais, para o depois, para o 'quero mais'. Eu suspiro um bom tanto, é fato. Sei lá, fiquei vagueando na ladeira, no bar, nas pernas de Helena...
ResponderExcluirVocê tem esse jeito danado de bom de por as palavras para fora, sabe como? Eu fiquei tentada a grifar um tanto de frases, porque é pura poesia. Acho que é isso. Você, Helena, esse texto, o samba... pura poesia.
Sobre o comentário lá no blog, fico feliz de não ter desapontado. Acho que alguns pedidos são urgentes na expectativa (vã) de que possamos crer neles. A gente diz 'não' como quem diz 'fica'. ♥
Saio cantando daqui, como sempre.
Beijo meu,
Mafê.
Que suave, que penetrando, que profundo. Adorei. Nao tenho palavras, adorei.
ResponderExcluirHelenas, Helenas, Helenas, por favor.
Abraco!!!
Simplesmente encantador. É o tipo de história que nos encanta no decorrer de cada palavra, de cada frase. Quando chega no final, somente uma expressão que vem na cabeça: uau! Tu escreves lidamente, Jaya. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirBeijinhos...
Você escreve muito bem! Seu ritmo nos envolve, do começo ao fim.
ResponderExcluirE eu o texto todo esperando que Helena cedesse ao eu lírico, hahaha.
Final feliz.
Beijo!
Essa linha tênue entre o romance e a lascívia sempre nos arranca suspiros, né. Acho que Helena é um pouco nós. Nós que queremos o amor e desejo casados.
ResponderExcluirTu é foda, Jaya.
Dá um frescor no coração, sempre que vejo que tem texto novo por aqui. Ou que você passou pelas minhas cores deixando um pouquinho de carinho por lá...
ResponderExcluirE que doçura de Helena! Que vontade de ser esse poema e essa leveza em rima compassada... Que ela caia mais vezes em nossa mão e sambe todo dia cedinho no nosso coração, nessa graça de viver.
Um beijo meu! E obrigada: por escrever, por compartilhar, por ler minhas cores e preparar um canto com aconchego pros 30... nos vemos lá, em breve! <3
E as letras sambaram e se transformaram nessa leitura gostosa. ;)
ResponderExcluirQuanto talento!
ResponderExcluirLeitura fantástica, confesso que aproveitei cada palavra.
Meus parabéns. ;)
Beijo!
Jaya,amore mio
ResponderExcluirEsse teu dom da poesia latente me faz emocionar.Sambamos nós com a leitura dos seus textos tão intensos. Voce é especial por demais.
Desejo uma Feliz Páscoa, para você e toda sua família! Que seja um momento de reunião e felicidade. E que os bons sentimentos recolhidos nesta época sejam levados para o resto do ano, para todos os domínios da sua vida, principalmente pro seu poetar. Beijo meu
Encantador como sempre Jaya. Bom que voltou com a página estava sentindo falta, essses dias procurei e não achava. <3
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