Me aconteceu de um dia morar nessa casa. Miúda,
cheia de cachos e um olhar um pouco triste, já quando cheguei, ganhei minha
primeira irmã. Estava ali, pronta, feita de um amor novo, me sorrindo de um
jeito que me ganha até hoje, mais de vinte anos depois. Não fosse ela e meus
olhos talvez não tivessem nunca melhorado e passado a ver as coisas um pouco
mais bonitas.
A Casona é um monumento histórico – pelo menos
assim sentimos, dentro da minha família. Fecho os olhos e consigo desenhá-la em
todos os seus muitos detalhes. As paredes da frente costumam geralmente estar
brancas, com janelas, portões e portas amarelas, que é para combinar com o Sol,
habitante mais antigo e popular de toda a cidade que leva seu nome. É uma casa
feita de muitas histórias. Basta sentar à mesa da cozinha, preferencialmente
aos domingos, antes do almoço e com uma bebida na mão, que elas começam a
despencar ao redor daquele fogão à lenha. A mágica acontece quando gargalhadas
se espalham, quando a campainha toca com mais um pedindo abrigo, quando uma voz
fala mais alto que outra, quando o bom gosto musical deixa evidenciar trilhas
sonoras muito bem escolhidas, quando surge um violão, quando se mostra um
livro, quando se indica um filme, quando as opiniões se desencontram e eu paro
um pouco afastada, só para observar. A mágica acontece e parece passar despercebida.
Enquanto isso, meu coração documenta mais uma história para contar nos próximos
anos.
As paredes são muito grossas, as portas e janelas
muito altas, o teto parece que foi construído querendo alcançar o céu. O que
ninguém entende é que tudo teve que ser feito exatamente assim, para caber.
Para caber histórias dos meus tios, que ali se criaram. De bisa Iracema,
matriarca, que nem cheguei a conhecer, mas deixou tanta raiz que parece ter respingado
um pouco de si, em todos nós. Para caber aquelas manhãs e fins de tarde com vovô
Henrique sentado com seu radinho que tocava assim tão alto. Para caber o jeito
tão manso, carinhoso e gentil de tio Eden, que nunca soube me entregar uma
palavra que não me fizesse querê-lo um bem cada vez maior. Para caber a melhor
e mais gostosa risada do mundo, que geralmente vem acompanhada de um abraço no
qual temos vontade de nos desmontarmos e nunca mais sairmos dali de dentro – e se
existe outra tia assim, eu não conheço. A minha chamo de Lourdes. Para caber
Elias, que sempre me deixa bem só de poder dividir o mesmo espaço que ele, principalmente ao notá-lo
falando sobre tudo de um jeito tão empolgante que me faz acreditar por um tempo
que a vida tem, sim, muita coisa boa – coisa de energia. E para caber Mônica,
aquela ali do início, minha primeira irmã, espelho de tanto do que sou, pessoa
na qual encontro um pouquinho de alicerce quando a vida insiste em me tirar o
chão – e hoje mãe de duas crias que refletem todos os seus mais lindos lados.
A
Casona é assim, tão imensa, porque abriga todas essas outras casas, pessoas as
quais a gente faz questão de habitar, afinal, encontrar lares tão bem projetados, com medida
certa para acolher quem somos, é raridade. Então terminamos todos, de alguma
maneira, ali morando. E comentando, entre nós: em Jequié é como se aquela casa
fosse um pouco nossa. E é. Porque todo esse sentimento que transborda é conexão
que não precisa de fio algum para funcionar.
Na Casona todo mundo é artista. Vai ver por isso,
uma vez ali, até o silêncio fala mais alto comigo. Na Casona se escreve, pinta,
desenha, toca. E ama – arte maior, da qual todos compartilham. Na Casona existe
um quintal meio encantado, daqueles que só se enxerga bem com uma lente de
infância. Nesse quintal a poesia de viver sempre correu livre e tive o
privilégio de saber o que é um mundo inventado, com uma liberdade intensa para
crescer para qualquer lado que eu quisesse. E se hoje sonho tanto assim, se
escrevo tão azul, é porque trago nas mãos pincéis desse tanto de ontem que vivi
ao redor daquele tamarineiro muito grande, com suas várias folhas sendo tapete
do meu chão.
Me aconteceu de um dia morar nessa casa. De
aprender um pouco mais sobre ser gente. De acender fogueiras em vésperas de São
João, de chamar um novo ano que se iniciava. Fui chamada de tia pela primeira
vez, ganhei uma nova versão de mim junto ao nascimento de Maria Luiza.
Comemorei conquistas, minhas e de todos eles. Chorei uma vez ou outra, mas
todos os sorrisos sempre compensaram. Deixei muito de mim, sempre saí de lá curada.
É meu socorro, meu melhor encontro. É para onde fui, pela primeira vez, miúda.
É para onde sempre volto, hoje, tão grande, como me dizem todos ali. É por onde
passa a história do que/ de quem sou. E de todos os muitos presentes ainda tive
o privilégio tão distraído de poder, naquela cozinha (mágica, como disse), em meio a tantas histórias, ter abraçado pela primeira vez quem viria a ser,
tempos depois, a pessoa com a qual agora compartilho minha vida. A Casona é o
lugar onde, além de tudo, encontrei esse Amor, que me poetiza de cima a baixo.
E é por isso que, uma vez ali naquela cidade,
quando o táxi sobe a ladeira e entra naquela rua, eu faço questão de apontar: é
ali, na esquina, aquela Casona, com as janelas amarelas. E saio já recebendo
alguns dos sorrisos mais bonitos que alguém pode receber, quando o portão se
escancara de coisas tão boas que eu consigo até sentir o cheiro do que respirava
há mais de vinte anos. E ainda hoje me alimenta.
Eu acho que o mundo seria mais de viver se todo mundo existisse um pouquinho numa Casona assim.
Eu acho que o mundo seria mais de viver se todo mundo existisse um pouquinho numa Casona assim.
Para Môni,
Elias, tia Lourdes e tio Eden.
Obrigada por
terem sido e continuarem sendo partes de quem sou.
Só posso sorrir
alguns dos maiores e melhores momentos
da minha vida porque vocês existem.
Poesia, sempre.
Fiquei imaginando essa casa quando eu lia cada frase, cada parágrafo.
ResponderExcluirSimplesmente mais um texto encantador. Gostaria de ter nascido e vivido em uma Casona, mas Deus conduziu outro caminho para minha família repleta de encantos também.
Beijinhos.
Li de novo e chorei de novo, sabe. É que eu fui lendo e me lembrando de todas as muitas vezes que você me falou deles e dessa Casona (lembra daquele vídeo? Guardo até hoje). Do tanto de amor que despenca, enquanto você fala do seu povo. E aí emociona, mesmo. Emociona porque é quando eu entendo você ser desse jeitinho, toda feita de amor. Falei isso no texto de sua avó também, mas é que você é feita de todas essas gentes meio encantadas. E isso é a coisa mais linda.
ResponderExcluirÉ sempre lindo quando você entrega todo esse seu amor em forma de texto.
E é sempre uma delícia de ler e sentir.
Uns beijos, nega.
<3
Ola Jaya querida,
ResponderExcluirSeu texto fez com que eu viajasse na minha infância e adolescência. E houve casonas bem parecida com a tua. E nessa passagem de tempo recebo teu abraço apertadinho. Fico um instante imaginando o tanto que voce é gigante.Iluminada alma chamada Jaya.
O bonito acaricia o olhar...mas quem verdadeiramente invade o coração, quebrando barreiras, sem reservas...é a bendita delicadeza...ah, como não amar, como não se render a uma alma mansa? A quem tem mel no espírito, e lambuza a tristeza da gente?
Deus te abençoe moça e que seu caminho continue sendo de luz.
beijos meus
Que gostoso, Jaya. Muito bom passear por essas lembranças através de suas palavras. Não poderia ser diferente, né? Você ser cercadinha de tanto amor.
ResponderExcluirBeijos, nega <3