O outono chegou com seus ventos e temperaturas
amenas e enquanto observo o céu nesse fim de tarde, penso em cheiros que me
trazem lembranças de sorrir. Cheiros de poesia interna, resolvo nomear. Guaraná,
por exemplo, tem cheiro do parque que eu ia todo domingo, menina. Café recém-coado
me faz ouvir meus passos caminhando pela cozinha de vovó Nina junto às vozes
misturadas dos meus tios e de vovô Maneca. Panela de pressão cozinhando um feijão
bem temperado me permite escutar o sorriso de minha mãe e das minhas irmãs. Pipoca
me transporta para uma infância na varanda de vovó Alice, comendo e vendo a
chuva cair lá fora. Amora, de qualquer jeito e em qualquer lugar, traz vovô
Arthur de lá do céu e não sei explicar o motivo. Eu observo as cores dessa
tarde lá no alto e respiro memórias de vários ontens bonitos de viver. O hoje
anda perigoso e eu sinto uma falta dolorida do amanhã.
Acho que já faz quase dois meses que não saio de
casa. Resolvi que não ia contar, porque não tem data pra chegar a hora de
dançar com sensações livres. Quase dois meses e meu coração se desmontou para
caber um pedacinho em cada parte do meu corpo. Sinto em excesso, mas não
consigo definir nada que sinto. Estamos em casa, juntos, inventando maneiras de
deixar as coisas o mais parecidas possíveis ao que já não é. Cozinhamos,
limpamos, almoçamos, damos risadas e também brigamos. Mas, a parte que é
para mim mais importante: respeitamos nossos silêncios. Às vezes pesa e nos
esquecemos na cama, cada um no seu quarto, ensimesmados e com a certeza muda de
estarmos ali uns pelos outros. Quando fica muito cinza, somos levados dentro do
carro para enxergarmos a vida que pulsa lá fora enquanto não observamos. Crianças
sorriem no quintal vizinho e um pouco de paz respinga por aqui. Aviões não
pousam mais nessa cidade, mas outro dia estavam quatro bem-te-vis conversando
no muro. A vida continua, completamente desavisada e agora de um jeito
diferente. E depois?
Meus olhos andam desbotados e não choram. O mundo
já está tão triste sem minhas lágrimas, que fico martelando jeitos novos de ser
feliz. Cada vez mais consciente dos meus privilégios, agradeço sem pressa todas
as vantagens de não precisar brigar no braço com esse inimigo invisível que
todos temos em comum. Tenho suspirado o dia inteiro, como se jogasse pra fora parte
do sufoco das incertezas. Meu coração está quase cicatrizado enquanto muitos se
rasgam. Vou ao quintal, volto e lavo as mãos. Dou banho no cachorro, lavo as
mãos. Lavo as louças e, quando vejo, estou no banheiro lavando as mãos. Passo
as mãos no rosto e sinto o ressecamento. Escrevo uma mensagem pra minha mãe,
dou risadas virtuais com meus irmãos, lavo as mãos, limpo o telefone com
álcool. Me abraço às vozes que eu queria perto, lembro que faz dois meses que não
descanso o coração em ninguém e bebo água. Tenho bebido muita água, talvez
inconscientemente querendo afogar as ansiedades, deixando boiar apenas o que
for sereno. Moraes Moreira morreu e junto a ele metade da minha já escassa vontade de fazer festa. Mesmo assim ainda pulso.
Olho o céu procurando o mar, refletindo num looping eterno sobre como tudo aqui é
efêmero. Procuro me demorar. Muito. Em tudo. Pintei os meus cabelos. Não consigo estudar. Cortei os
cabelos dos homens aqui de casa. Faço bolos e sobremesas. Tenho lido muito. Tenho ficado paralisada e ansiosa. Tenho fantasiado uma pessoa bonita de se ter nos sonhos. Alguns dias acontecem e não vivo. Tomei uma decisão
importante e talvez atrasada, para quando o depois chegar. Durmo quando consigo. Continuo com a
ioga. Queimo incensos e pingo gotinhas de lavanda no meu travesseiro, feliz ao
descobrir que uma moça cheia de cores tem o mesmo ritual de poesia. Entendi que
gosto da cidade que abandonei depressa e talvez a história me leve de volta pra
lá. Nunca imaginei que fosse um dia viver a parte ruim de um filme outrora fictício.
Estamos doendo muito e ver pessoas virando números retira de mim peças que
jamais se encaixarão.
Nunca mais o sol me recheou e respirar continua
sendo um exercício de sorte. Escrevo e esse é o maior movimento de amor que posso
fazer agora. Escrevo para que as palavras façam as vezes de um abraço proibido. Nada
vai acabar sem dar certo. Há de chegar o instante onde acenderemos, logo ali, pertim. Pela primeira vez desde que cheguei aqui, fora da redoma maternal,
vejo todo mundo junto e apontando para um lugar comum cheio de luz. Sinto
saudades. Medo. Mas a fé continua a chegar calma em todos os segundos. Quem sabe essa noite eu consiga até dormir de verdade e voltar a sonhar.
Eu sinto e dá tempo.
eu li ontem, assim que a luz voltou. hoje fiquei pronta pro trabalho muito cedo, sentei na cama com minha xícara de café e li de novo, olhando os meninos dormirem. Agora entrei aqui, respirei fundo e li de novo. E aí eu chorei. Porque eu tenho escorrido muito e mesmo assim, vivo com esse nó me engasgando. Nada faz passar. Tem tanta coisa acontecendo e parece que eu nem existo. ontem vi um filme e um dos personagens disse: "eu nunca soube porquê eu nasci" e me peguei pensando que talvez eu também não saiba. voltei das férias com tantos planos e de repente... "mas a fé continua a chegar calma em todos os segundos", né? E é daí que vem a força. Mesmo sendo de cadim em cadim.
ResponderExcluirAinda bem que você escreve. Me faz ficar mais leve. <3
gosto de te sentir bem. de sentir que você tem conseguido se manter tranquila diante de tudo. é o que me faz ter certeza de que vamos passar por mais isso.
obs.: o gosto de coentro me lembra você. o mar também.
e o céu me lembra uma foto bonita que você me mandou, do dia que vovô Arthur foi morar lá. acho bonitas essas lembranças.
eu tô sempre aqui.
Te abraço,
Ty.
Sentir você foi o amor carinho dessa quarentena
ResponderExcluirPoxa, Jaya. Esse me atingiu em cheio. Como diria Adélia, "debaixo do braço". Tão verdadeiro. É triste, mas acolhe. Sabe?
ResponderExcluirUma vez, há algum tempo, você me desejou um abraço cheio de asas. Nunca esqueci. Enquanto suas palavras me alcançam penso em você e te desejo uma abraço cheio de sol.
Você é pura sorte. Fica firme aí, que eu fico firme aqui. E a gente vai se ajudando. Nem que seja com poesia.
Oi minha poetisa preferida,
ResponderExcluirTe respondendo o que você deixou no meu blog, penso que os caminhos errados são aqueles que vão nos levar ao caminho de luz. Você acha mesmo que ainda não encontrou? rss Você é a prória luz que ilumina seu caminho e de outros. Pode acreditar. Palavra de Bandys. ☺☺
Seu texto alem de lindo me remete ao silencio. Me faz ir de encontro com a minha fé, mesmo com o barulho do mundo. É isso, cultive seus brotos de esperanças em todos seus momentos.
..que a luz, a paz, a esperança e o amor tragam no vento, um doce alívio pra nossa
angústia que às vezes cansa..(Bandys)♥
Aí meu Deus, Jaya... Esse é um texto que eu leria facilmente num jornal, merece ser publicado em diversos locais 💜 Gotinhas de lavanda no travesseiro é o que há!
ResponderExcluirSabe, compartilho desse teu sentimento e fico pensando no quanto imediatistas também somos ao lembrar de Anne Frank e, sendo cristã, também me recordo de Noé na arca, de Ester "presa" numa seleção no Palácio... E, puxando para o lado do direito, também de tantos presos injustamente. Sofrimento não deve ser comparado, mas, pelo menos, sofremos juntas e cheias de fé! Continue nos encantando com essas lindeza em forma de texto poesia 😘
É... dois meses assim é uma eternidade, né rs
ResponderExcluirAmei s2
Oi, Jaya. Esse foi o texto mais bonito que já li nos últimos dias. E isso tem motivos bem claro, esse é o tipo de texto que dá motivos pra continuar.
ResponderExcluirObrigada por saber tão bem como usar as palavras e por compartilhar com o mundo a sua beleza.
Como é lindo o mundo aos olhos dos artistas. Você é uma grande artista.
Fico sempre muito emocionada com todos os comentários deixados aqui. São minhas relíquias. Separo todos num canto espaçoso para revisitar e ir aos poucos montando as peças dos motivos pelos quais escrevo. Ainda não sei. Mas um dia descubro.
ExcluirObrigada por vir aqui me dizer tudo isso. Fique sempre à vontade. É nosso!
Eu tenho pincelado tantas sensações durante esses dias. E esse teu texto grifou bastante um pouco das emoções que se amontam aqui, porque tem essa singeleza comum que há entre nós, essas vírgulas entre as ações, o modo de levar os dias que parece aleatório. Mas é que no fundo o corpo se firma e se repara diariamente. É bonito e interiorizado sabe Jaya, o modo como você traduz esse momentâneo de vivências que se afloram num momento tão incerto. A gente se abraça nessas "pequeninices" que tornam nossa vida tão precisa e pulsante; e sobretudo, relevante. É acreditar. É persistir. Dentro do nosso cotidiano repleto de esperanças e sentimentos engavetados por dias tão intensos, mantemos a brasa viva. Eu floresci aqui te lendo.
ResponderExcluirSaio com o pulso mais forte. Sim! Ainda pulsa. Ainda mais agora.
Beijos!!