Todos os dias nas últimas semanas, quando chega o entardecer, entro no carro com minha vó, meu irmão e nosso cachorro. Fazemos o percurso até um lugar muito afastado e isolado para caminhar, tomar um pouco de sol e respirar diferente, sem nenhum teto. A intenção inicial não era nenhuma senão nos exercitarmos e absorvermos um pouco de vitamina D, nessa busca de um pouquinho de saúde dentro de um mundo que tem andado tão mais adoecido nos últimos (quase) sete meses. O que encontrei, para muito além do que precisávamos, foi um jeito novo de sentir a natureza de tudo o que existe.
Caminhamos lado a lado e ela, em seu corpo já tão gasto de vida, desperta no meu novos ritmos. Meus passos ensaiam a dança silenciosa dos seus enquanto trocamos palavras e histórias, de máscaras, lendo apenas nossos olhares cada vez mais expressivos. Todos os dias falamos sobre os pequenos ipês recém-plantados no meio daquela avenida que começa a nascer. Alguns já florescem, amarelos e roxos. Ela sempre imagina o futuro, me dizendo da beleza que enxerga antecipadamente quando aqueles mesmos ipês estiverem imensos e coloridos, atraindo a atenção de todos os que souberem daquela vasta coleção que começa a brotar nesta pandemia. A vida não demora.
Comento sobre o nascimento da filha de uma amiga, uma gestação que não pude acompanhar de perto devido ao isolamento, mas que não me impediu de celebrar a força tão selvagem com a qual, em suas vezes de bicho-mulher, ela trouxe ao mundo uma pequena grande Maria. Vendo as fotografias de alguns momentos do parto, uma em especial conversou forte comigo: estava ela gritando um sorriso com sua cria no colo, os olhos apertados de tanta gratidão que transbordava, me permitindo sentir e fixar nas minhas lembranças, muito claramente, uma das mais poderosas personificações do amor. Trouxe comigo, entre lágrimas, a certeza de que milagres não são feitos de grandes gestos: é natural, muito sóbrio. Abrir os olhos é o mais cotidiano deles. Maria chegou me lembrando de não esquecer que estar vivo é festa.
Enquanto seguimos andando, eu e minha vó, olhamos muito o céu. Nosso caminho é o mesmo, todos os dias, mas agora somos sabedoras de nuvens, de vento, de lugares que o sol prefere, da cor que ele aquarela os espaços enquanto cai em cada um dos lados. Na última curva, subimos uma rua aladeirada. Percebo que diminui a velocidade dos passos e, como num presente trazido pela primavera, avança em mim um cheiro louco de jasmim. Inspiro, suspiro e simultaneamente, sem escusa, o aroma invade o lado de dentro da minha máscara. Questiono se ela também sente: pelo terceiro dia, me diz que não. Coloca em dúvida minha fala de quem já enxergou o jasmineiro do outro lado do muro — se ela não vê, estou errada. Sorrio embevecida enquanto ela descobre as flores que aparecem na mangueira isolada em meio àquele loteamento deserto.
Na etapa final, em linha reta, o sol vai se pondo em nossa frente. Ela aponta, eu aponto, os desenhos começam. Comparamos se está mais bonito que o de ontem e questionamos se estará mais belo amanhã. Às vezes fotografo, às vezes ela reclama que não dá pra olhar direto — seus olhos azuis contrastam e se fecham. Mostro a imagem no meu telefone e ela elogia. Não sabe da nova coleção que comecei a fazer em silêncio: nossa jornada muito juntas, nossos olhares que agora olham mais parecidos, um monte de ontem que ela conta e eu guardo no colo para nomear quando chegar minha vez de contar, e um sem-fim de pores do sol.
Na esquina encontramos meu irmão e o cachorro, exaustos. Entramos no carro. Ela reclama um cansaço e diz que não virá no dia seguinte. Sorrimos os três. Todos sabemos o pacto silencioso que percorre esse movimento diário. Voltaremos. Sentimos como ela pisa mais forte a cada dia, mostrando que viver é gastar a vida, sem perigo de esbanjar. Existe sempre troco e nós nunca contamos, preferimos juntar para esticar até quando der. E sempre dá.
Mas vó, se foi Deus que fez o céu, o que ele usou?, questionava a você meu pai, menino. Ainda não sabia a resposta naquele dia, mas agora explico: usou a mesma combinação lúdica que cabe nos teus olhos. É pelo azul que você sempre se guiou. E eu sigo.
Ai, ai. Eu fui lendo e me arrepiando. Você sabe da coisa que eu tenho com Vó.
ResponderExcluir"um jeito novo de sentir a natureza de tudo que existe". Se isso não é uma oração, eu desconheço o que é rezar.
Enxergar é, de fato, antecipar a beleza das coisas. Sua Vó sabe. A vida não demora. A vida é agora.
"Milagres não são feitos de grandes gestos". Que bom que a gente aprende isso, né minha amiga?
Que bonito, Jaya. Leio sobre sua avó e sinto que há muito dela em você. Que sorte, hein.
Abraço vocês duas.
Ps.: Amo quando você me manda atualizar o blog, hahaha.
Agora sei a quem você puxou, sei do seu DNA, sei das suas raízes.☺♥
ResponderExcluirNa leveza desses caminhos o coração se enche de sorrisos e a alma derrama "cadinhos" de paraíso. Jaya menina, que linda sua vó, que linda voce.
A vida assim se faz bela e que ela nos de a cada dia as essências de todas as estações que que só ela tem para nos dar.
Beijos meus na familia,
Sorriso do tamanho do mundo pra você, carregadinho de energias boas.
Adoro suas idas por la.
ô menina, que bom te ler!
ResponderExcluirque bom ver esse blog aqui :') andei sumida, mas, aos poucos estou voltando.
beijo proce!