Acho que foi naquele dia, naquela festa, quando você estava em pé no círculo de algumas pessoas e eu te olhava de longe. Você falava, afirmava e concluía suas inúmeras certezas enquanto eu percebia que a grande maioria te ouvia desatenta e, como se já soubessem que não valia o cansaço, não ousavam te contrariar. Foi por essa época que comecei a achar muito mais fantástico olhar para os meus pés. Nesse dia bebi um pouco mais e terminei a noite dançando, sem saber o que estava fazendo ali. Em outros tempos teríamos fugido para algum lugar escondido onde eu levantaria o meu vestido e você abriria sua calça, reaparecendo depois os dois suados de muito amor.
Teve outro dia, no churrasco, quando você estava bêbado e começou a falar sobre política com aquela propriedade de quem nunca abriu um livro de sociologia, de quem se afoga em fontes duvidosas e vomita dados incertos. Falava cada vez mais alto, como se o poder de convencimento aumentasse junto ao tom da sua voz. Afastada, soprei um sorriso desconfortável e fui procurar a pontinha da varanda onde dava para ver o mar. Eu já era triste.
Teve eu te explicando as coisas falando baixinho durante conversas com conhecidos e você replicando a eles em voz alta, como se minhas palavras fossem uma conclusão sua. E minha naturalidade em me fingir de boba só para que você se acalmasse me definindo alguma coisa óbvia. Teve o dia a dia, onde elucidei sobre muitas coisas sem deixar você perceber. Eu te moldava com malabarismos sutis. Teve a primeira vez que fomos à praia e você não entendeu que eu queria ficar sentada olhando o mar e sentindo o sol, brigamos. Todas as vezes em que fomos à praia, brigamos. Hoje é muito claro que você nunca gostou. De praia. De mim talvez sim.
Teve o período depois de alguns meses onde todo o labor doméstico ficava nas minhas costas e o tesão foi sendo jogado no lixo. Teve então, como era esperado, o instante muito dolorido onde você me tocava e eu já não sentia nada acordar. Teve aquela noite em que discutimos e você quebrou aos murros um aparelho eletrodoméstico. Chorei de medo pela primeira vez. Teve (mais) outra situação difícil de aceitar, era fim de tarde, arrumei minhas malas, mas o desequilíbrio emocional me fez passar mal no chuveiro. Você me abraçou e eu fiquei, mais uma vez, impondo uma condição abusiva que você aceitou, me ajudando a entender o quanto aquele relacionamento já estava doente.
Teve que você começou a viajar quando finalmente consegui me fixar. Percebi como era melhor sozinha. Teve meu apoio incondicional a todos os seus voos e uma melancolia ao notar que nada em mim empolgava você a ser assim comigo também. E teve a primeira vez onde confrontei você de verdade, mostrando os limites das escolhas e sendo muito clara em não admitir aquela cegueira diante do fascismo que perigava ser imposto socialmente.
Teve que eu já não fazia mais questão nenhuma de dividir os meus anseios e sonhos com você. Vislumbrei com clareza a distância dos nossos mundos. Tentava me apegar a um amor que nunca existiu, via as idealizações serem desconstruídas na minha pele. Teve você me colocando de pé quando nem sentada eu conseguia ficar, mas mesmo ali você não entendeu nada. Nem quis. Não teve curiosidade em se rasgar comigo e ver o que poderia ser mudado já que eu sangrava com a fratura totalmente exposta. Cicatrizei sozinha.
Teve então que fui crescendo. Eu te dizia: estou mudando. E dizia feliz. E isso te assustava. Você, João, antecipou seus passos. Preciso sair disso antes que ela saia. Enlouqueceu diante da minha mais completa serenidade pós-caos. Fez suas planilhas de análise, justificando para si mesmo os seus motivos disfuncionais. Teve o seu pavor em ser direto, até o último momento. Tive que puxar seus braços, abrir sua boca, te fazer falar. Eu queria a verdade: eu não quero mais você. Eu não quero mais fazer isso aqui. Eu não sinto mais como eu sentia. Mas tudo o que vinha era: não sei. E quem sabe, João? Eu. Eu sabia. Eu sempre soube.
Teve que não era para ser mesmo enquanto foi. Teve que nunca deu certo. Que você só me machucava, desde o comecinho. Que você conseguiu chorar olhando fundo nos meus olhos, fazendo promessas mentirosas que flagrei em seguida. E fiquei. Talvez porque a distância tirava tudo o que doía do meu alcance, enquanto eu comia as fantasias que criei sozinha. Teve a convivência diária mostrando que às vezes até dava para ser normal, caso eu pisasse em ovos o dia inteiro. Teve uma parceria onde quem sempre abriu mão e tentou e acrescentou e acreditou e quis insistir um pouco mais, fui eu. Teve que a decisão de sinalar o fim, no fim, foi minha. Cheguei já sabendo que viria embora. Não consegui chorar nem dramatizar tanto assim, mas tentei. Me desculpe.
Fecho os olhos e não lembro de nada relacionado àquilo. Sinto minha força em deixar para trás aquele apartamento com tudo o que construímos juntos. Pouco, mas compartilhado. As minhas malas feitas, todo o resto pode ser teu, porque nada que já te pertenceu consegue conversar comigo. Quando o modo automático desativou, eu estava no avião, em cima do mar, cercada de azul, decidida. Como nunca antes.
Teve que dois meses depois ponderei: era muito tirar você da minha vida de uma vez? Teve mensagens e e-mails mostrando um arrependimento que só saiu escrito, porque era falso. E uma conversa onde pensei: acho que é possível reformar tudo e começar do zero. Mas você era o mesmo. Você é o mesmo. Foram anos para entender que ninguém muda. E apesar daquelas transformações pontuais, você nunca bastou para mim. Daí teve a nitidez da minha voz de choro ao telefone e você irônico me dizendo: mas não foi você quem disse que estava forte? Lembra o que eu te disse, João? “Ser forte é ter emoções.”
Teve um dia onde lembrei nós dois deitados no escuro, quando decretei que se existisse um ponto final, você nunca mais me veria, nem me ouviria, nem teria notícias sobre mim. Porque me conheço. E você retrucou que eu não sabia de nada, nem sequer havia passado por um relacionamento assim. Fiquei quieta. Tudo acabou ali. Deixei você dormir na mesma cama. Passei a noite em claro enquanto você roncava. O sexo do dia anterior tinha sido o pior da minha vida, mas você gozou. Aí chegamos ao dia seguinte, João, onde pedi que me deixasse sozinha em casa. Você saiu. Não teve abraço. Nem beijo. Nenhum olhar. Algumas horas depois, bati a porta, desci as escadas, peguei o primeiro avião. Pousada, joguei as chaves pela janela do carro. Nunca mais eu abriria algo que me mostrasse você do outro lado.
Não consigo lembrar de nada bonito que você me entregou, além dos meus próprios textos, porque foram escritos por mim. Às vezes ainda menciono seu nome ao citar exemplos de coisas que não se deve reproduzir. Me apaixonei de novo depois que você passou, por alguém que me fez sentir meu coração saudável mais uma vez. Pulsa bonito, não fala mais a sua língua.
Aí, João, teve noite passada. Você em meio a um pesadelo. Acordei assustada e senti com alívio: não me afeta no presente. Resolvi escrever para te contar. Tudo o que você não sabe, eu sei. Sempre soube. Só não sei mais como é seu rosto, nem a paisagem que eu observava todo dia pela janela da sala, muito menos de qual lado fica aquela falha na sua barba e a pinta no seu olho. Minha memória já perdeu até mesmo o número do seu telefone. Vai fazer um ano, João. Um ano que voltei. A ser.
Parabéns! A mim. E obrigada, por nada.
Nudes pra quê? Aquela reação "força do Facebook pode ser bem substituída aqui por um abraço e 50 horas e um "mulherão da porra, né, minha gente?".
ResponderExcluirBeijava.
Sim, meu corretor me trollou com as aspas e o "beijaYa".
ResponderExcluirSabe, sua história é a minha história, e ela me lembra que tem feridas que ainda ardem, mas que eu espero já ter aprendido a proteger. Tem Joões demais no mundo. Ainda bem que a gente voou.
ResponderExcluirTão dolorido. Tão desmerecedor do ser o que você é. Jaya amada, seja feliz hoje. Só temos o hoje. Seja com todas as suas delicadezas e perfumes.
ResponderExcluirMe identifico, quantas vezes precisei sair do inferno que vinha adocicado como bala de hortelã. As vezes demorava, mas sempre soube sair. Eu e Deus.
que a luz, a paz, a esperança e o amor tragam no vento um doce alívio pra tua
angústia que eu sei que às vezes cansa.
Você é linda por dentro e por fora.
Beijos no seu coração de quem te admira de montão
Me identifico, vc pode imaginar. Toda mulher se identifica pois patriarcado, claro. Mas o detalhe da questão política... É muito louco... Não bastasse tudo ainda tem essa onda fascista revelando as verdadeiras cores especialmente dos machos. Bóra voar e que o coração pulse bem lindo. Gradicida muito por esse texto. 🌹 Que escritora, senhores.
ResponderExcluirAna,
ExcluirÀs vezes a gente insiste tanto em estar dentro daquilo, que a cegueira é real. Mas com um pouco de terapia e sol, tudo fica muito claro. Pode demorar, mas a gente enxerga.
Obrigada pelo abraço. Sigamos atentas e fortes!
Li o texto com uma vontade tão grande de chorar, Jaya.
ResponderExcluirSou sua fã incondicional por várias razões, mas a principal delas: você ser quem você é. Forte demais. O texto. Você.
Te amo.
"Ser forte é ter emoções". E esse seu texto me trouxe tantas emoções, diversas, mas intensas, numa medida que não sei avaliar. De fato, sempre acreditei em sentir ao máximo cada momento, seja ele alegre ou triste, controverso ou natural. É bom transbordar para depois acalmar.
ResponderExcluirE neste texto você sai de um transbordamento para uma luz. Os caminhos do teu pensamento, amparados em cada momento; a transformação da tua atitude em meio ao avançar dos dias, em reação a uma pessoa que só vai desafiando e te deixando pequena com o tempo é de uma intensidade que sufoca. Porque a libertação é doída e a gente se espelha nesse vendaval de coisas pelas quais passamos em uma relação.
Amiga, "gaiolas" aprisionam o nosso canto. A gente não sente essa transição, da mesma forma como passarinhos recentemente presos em gaiolas podem até se acostumar por um tempo onde estão sem saber que estão numa prisão. Mas quando o tempo passa, sufoca e o brilho diminui. Quando passarinho foge e descobre o brilho do pôr-do-sol (e da liberdade), nunca mais lembra que um dia viveu preso.
Voa!
Te adoro e obrigado por estar!
Não sei o que dizer. Mas te mando um abraço que te acolhe inteira, com toda a sua força.
ResponderExcluirVocê é. Nunca vai deixar de ser.
E é assim que aprendemos e nos moldamos, né? Claro que podia ser menos dolorido, e acho que é, quando a gente é mais aberto à enxergar. Direcionar os pensamentos. Que viram sentimentos. Que viram ações. Essa coisa toda. Eu acredito que funciona, e acredito na arte... E você é pura arte, Jaya.
ResponderExcluirUm abraço enorme pra ti! Continue escrevendo. E que sua vida seja fabulosa!