Para vovó Nina, minha mãe e tia Rita.
Na casa de Nina crescemos ao redor da cozinha. É um espaço muito grande, onde cabem dois sofás, uma estante, uma máquina de costura, uma mesa de madeira muito comprida com oito cadeiras, uma geladeira, um fogão, uma pia e vários armários. Não bastasse, ainda inventaram de fazer uma extensão, com mais um fogão, uma pia, um fogão à lenha e uma despensa. A família é grande, são seis filhos. Um desses filhos é justamente minha mãe, motivo pelo qual tive o prazer de, junto a meus montes de primos, vivenciar um movimento típico de um acúmulo de amor com todas as suas desconstruções. Nós sorrimos muito, nos abraçamos e nos beijamos mais ainda, temos piadas internas e códigos, fofocamos sem desejarmos mal a quase ninguém, falamos alto, brindamos por qualquer motivo, brigamos por quase nada e aos domingos, aqueles onde conseguimos reunir todo mundo, exaltamos sem precisar de palavras a sorte de sermos fluxos do sangue de dona Nina e seu Maneca.
A cozinha é lugar dos encontros todos. A campainha toca e atravessamos a casa inteira para alcançar aquele canto que tem sempre um cheiro por onde nos guiarmos. Ali eu observava, ainda menina, a mágica sendo feita entre panelas e misturas de aromas. Pelo olfato, aprendi a adivinhar o que estaria na mesa algumas horas depois. Enquanto observava, às vezes recebia tarefas, como buscar um ou dois pedaços de lenha no fundo do quintal, manusear a máquina de moer carne e também a de café, lavar os pratos, lamber as tigelas ou provar os primeiros pedaços de algo que seria servido em seguida. Eu só via vantagem, principalmente quando surgia no caminho algum prato especial e eram tirados de dentro do armário os antigos cadernos de receitas.
Com folhas amareladas, letras diferentes, páginas despencando, colagens de revistas e embalagens de leite condensado/ creme de leite, tudo ali se conectava. Sentia como se estivesse diante de um antigo mapa do tesouro. Tesouro esse rico de feitiços palatáveis, símbolo de um poder matriarcal capaz de atravessar gerações e fogões servidos de histórias sempre bem alimentadas. Folheando o caderno até encontrar a receita escolhida, passava os olhos e imaginava o gosto que teriam aquelas junções. Ao cair no título procurado, chegava minha vez de auxiliar, enchendo xícaras, procurando ingredientes, fotografando as mãos que iam em direção ao próximo passo, tatuando de farinha, massa, calda ou molho, aquele papel encharcado de memórias.
Penso agora que esses cadernos foram algumas das primeiras coisas que li. Geralmente vó, tia ou mãe pediam para buscá-lo na gaveta. Dependendo da ocasião, estavam juntas as três. Se fosse uma festa, estariam ali outras mulheres parentes e amigas, reunidas na intenção de multiplicar as receitas e acelerar os processos. As vozes misturadas entre risadas e muita conversa preenchiam minhas expectativas enquanto as fornadas iniciais incendiavam a casa com uma fragrância quase sagrada. Quando não era oferecida a pontinha de algo para provar, às vezes fazíamos (eu e meus primos) malabarismos para furtar despercebidamente. Nem sempre funcionava. Pegos em flagrante, fugíamos a base de gritos e ameaças enquanto gargalhávamos sem medo algum, prontos para repetirmos tudo dali há alguns instantes.
Com o tempo aprendi eu mesma a cozinhar. As primeiras receitas foram os doces. De tanto observar como se moviam as mãos cozinheiras ao meu redor, aprendi a fazer bolos que eram muito apreciados. Passei a ousar sobremesas, deixei minhas marcas nas anotações que tínhamos em casa. Às vezes voltava na cozinha de Nina, copiava algumas receitas para mim, conversava em pé acompanhando seus passos para entender a real ciência daquele molho de tomate mais delicioso do mundo, como fazer para deixar o arroz soltinho, como alcançar o ponto certo do vatapá. Nunca comi nada seu sem sentir já na primeira garfada que por ela havia sido feito. Hoje em dia, nos meus retornos ali, corto temperos, preparo saladas, volto no tempo quando a fumaça sobe ao redor. De vez em quando gruda em algum lugar o cheiro da cozinha de minha mãe, que nunca foi assim tão diferente. Respiro mais fácil aos domingos por conta de todo o ar que recheou meu estômago ao longo dos anos, deixando louca a anatomia dos órgãos.
Nos tempos atuais, já entendendo a cozinha como um dos jeitos mais bonitos de fazer poesia, consigo reprisar em minhas panelas os temperos das panelas de dona Nina, minha avó. Toda vez que meu fogão trabalha, me aqueço ao senti-las — ela, minha mãe e minha tia. As mulheres em quem tanto me espelho. Que me alimentam. Que me prepararam. Por causa delas, hoje sinto que amor é também comida. Coração vazio não voa, prova só um pouquinho.
Vê aqui se tá bom assim.
Muito boa crônica. É uma linda homenagem de Jaya, para três mulheres da família que todos nós admiramos demais.Parabéns!!
ResponderExcluirMuito obrigada, meu tio! Ler isso de você é para mim uma grande honra.
ExcluirSaudades demais!
Você tem amor em cada palavra que escreve. Te amo amo para todo o sempre 💖
ResponderExcluirEu te amo mais, mamis.
ExcluirOiee Jaya,
ResponderExcluirQue maravilhosa homenagem.
Me identifiquei muito.
Passei minha infância nas casas das vós.
Uma morava aqui no Rio e era espanhola, a outra morava no Piauí e era nordestina. Uma vez por ano ia pro Piauí passar as férias. A outra estava sempre por perto.
Aprendi os sabores, as culturas, o jeitinho de cada uma tão diferentes. Tão importantes pra mim.
É por isso que meu coração esta sempre no ar.
O amor é o voo.
beijos, muita saúde e paz nesse coração que é lindo demais.
Caderno de receitas para quem cozinha palavras e serve poesia e afeto. Fiquei pensando na sua avó agora, na cozinha Dela.
ResponderExcluirQue bom que você escreve, né minha anja. É Deus que olha kkkk